Em sua plantação, cada folha seca e galhos velhos eram aparados com as mãos firmes e com a calma de dar inveja até a um Buda centenário. Mesmo que sempre estivesse com os pensamentos distantes e o olhar pra lá do horizonte, ela conseguia escutar cada passinho de Joana, correndo vacilante pela grama com o velho Toddy, que ia pra lá e pra cá chacoalhando aquela linguona babenta. Ela tinha apenas três anos, mas seu fôlego era suficiente para dar risadas intermináveis, pareciam dar corda em todo o seu corpinho, que corria sem parar. Antônia acreditava que a energia de sua filha era tão forte que fazia tudo a sua volta ficar mais produtivo. Depois que nasceu, os ovos das galinhas pareciam mais saborosos, as cabras pareciam dar mais leite e as plantas cresciam até fora de época.
Naquele ano, as chuvas da primavera não vieram e o verão chegou antes, em agosto. Em novembro, muitas das plantas ressecaram e, enquanto Antônia cortava mais uma folha seca que não resistiu ao calor naquele mar de beterrabas, alfaces, abóboras, maças, rabanetes e algumas ervas, Joana tropeçou no pé do cão, que deu um grunhido e, em um momento de fúria, cravou os dentes afiados na coxa da criança, como se mordesse para arrancar o pescoço de uma galinha. O sangue esguichou e escorreu por sua perninha frágil. Uma pequena poça vermelha se formou sob a grama crescida. O sangue era tanto que parecia que a menina secaria em poucos segundos. O sol do meio dia brilhava forte enquanto uma brisa silenciosa era cortada pelos gritos de Joana. Naquela acolhedora paz sonora das montanhas, uma nota de terror pairou por toda a vizinhança. Os pássaros revoaram, as cabras gemeram e Jaber, como sempre fazia há dois anos, desde que Antônia foi morar na cidade, espiou na varanda de sua casa, mas desta vez foi diferente, Antônia não estava com os cabelos esvoaçantes e entretida com suas plantas, com seu varal ou com os animais e sim com Joana, que estava caída e ensanguentada.Ao invés de ficar espiando por trás do grosso pilar de sustentação da casa, ele correu por aproximadamente cem metros montanha abaixo, pulando a cerca, desviando das cabras e indo em direção à bela Antônia, como sempre imaginou fazer. Era seu momento de gloria e sua chance de se aproximar de sua linda vizinha. Suas pernas já não tinham a mesma habilidade de quando tinha trinta anos, mas sua postura ainda era firme. Não, não pode ser uma má ideia, pensava, enquanto corria e ofegava...não pode ser uma má ideia, corria, ofegava e repetia o mesmo ciclo.
- Pelo amor de Deus... o que aconteceu com a menina? — disse Jaber, engasgando entre a respiração e a incredulidade, ajoelhando ao lado da poça de sangue. Em outra ocasião, Antônia acharia engraçado ver aquele homem esbaforido tentando manter a postura.
- Não sei o que deu nesse cachorro, Toddy nunca mordeu ninguém. Os olhos vidrados da mulher iam de um lado para o outro. Ela sabia que era algo muito sério, era obvio que a menina não tinha tamanho suficiente para perder tanto sangue.
- Vou pegar meu jipe pra levarmos ela pro hospital, deve ter rompido alguma veia. Disse Jaber tomando o caminho de volta para sua casa ladeira acima. Antônia estancava o sangue com um pano de prato, que logo ficou ensopado e vermelho. A agonia começou a dar lugar ao desespero quando Joana desmaiou, sua respiração se tornara lenta e fraca, quase não era possível percebê-la. Seu peito fazia um movimento mínimo, enquanto o sol ganhava força e o calor ofuscava a brisa que já não era mais percebida nem com o chacoalhar das arvores. Toddy olhava de longe com a cabeça baixa.
- Vamos, Vamos! Grunhiu Jaber da estrada.
Antônia voou para o banco de trás com a criança depois de, eternos, dois minutos de espera. Os três tomaram o caminho do hospital. O velho Jipe sacudia nos buracos da estrada de terra, o motor a diesel gritava, cuspindo mais fumaça que uma chaminé de Cubatão. Antônia se esforçava para manter a criança no colo e o pano estancando o sangue, que não fazia mais tanta questão de sair.
Chegando no hospital, foi preciso uma cirurgia de emergência na veia femoral da pálida Joana.
Antônia e Jaber aguardavam ansiosos na sala de espera quando o médico responsável pela cirurgia surgiu indiferente pela porta com janelas redondas. Ele trouxe boas notícias.
- A cirurgia foi um sucesso.
- Que bom! Comemorou Antônia com os olhos cheios de lagrimas. - Eu posso ver ela?
- Sim, vamos até o quarto. Se tudo correr bem, amanhã ela poderá ir para casa. Ela teve muita sorte, se vocês demorassem mais alguns minutos para trazê-la, sua filha não teria resistido. Disse com ar cansado, colocando as mãos no bolso do jaleco enquanto andavam em direção ao pequeno quarto.
Depois do susto, Antônia passou uma noite calma, mas de pouco sono no hospital com Joana. Isso porque a enfermeira chefe entrava sempre que Antônia pegava no sono. Hora para trocar o soro, hora para medir a pressão e hora parecia entrar sem motivo, só para acordá-la. Joana parecia desmaiada e não acordou nenhuma vez.
No dia seguinte, após um monte de recomendações do médico, ela teve alta. Jaber buscou as duas com um saco de balas, pirulitos e chocolates. Um recompensador sorriso surgiu no rostinho de Joana. Os três foram conversando por todo o caminho. Falaram sobre os parques de diversões mais legais que já tinham ido, das aventuras que viviam nos dias de chuva que interrompiam a estrada de terra e deixavam a cidade sem luz, das técnicas de plantação que aceleravam o crescimento das plantas e das primeiras palavras que Joana pronunciou quando completou um ano e quatro meses, que foi Toddy. Ela escutava muito a mãe dar broncas no cão. – Toddy, não suba na mesa. Toddy, sai da cama. Toddy...Toddy...Toddy...
Jaber fazia perguntas sobre o passado de Antônia, mas ela se esquivava, era boa em mudar de assunto. Ele se irritava um pouco, mas não transparecia. Não saber nada sobre alguém não incomodava só ele, mas toda a cidade. Santo Antonio era um lugar que os segredos realmente tinham pernas curtas.
Quando voltaram, Jaber levou Joana no colo até sua cama. Fez um carinho em seus cabelinhos ralos, deu um sorriso sincero e acolhedor para Antônia, pensou em beijá-la, mas foi bloqueado por seu próprio juízo e, com sentimento de “missão cumprida”, foi para casa.
À noite, ele ficou por horas a fio, deitado em sua cama, olhando para o teto e lembrando do sorriso, do cheiro e da voz doce e confiante de Antônia, da inocência contagiante de Joana e de todas as coisas que aconteciam à sua pacata vida.
Por volta das três horas da manhã, um rangido alto irrompeu seus pensamentos como se as unhas afiadas de um gato arranhassem um quadro negro. No início, Jaber achou que fora apenas sua mãe na cozinha, mas o barulho era repetitivo e parecia ficar mais alto. As nuvens cobriam a lua deixando a noite mais escura. Ele levantou tateando as paredes e foi em direção à sala, onde podia ver os contornos do tapete de crochê do corredor, mais à frente à mesa de jantar e ao lado a fresta de baixo da porta da entrada. É daqui que vem o barulho! Comemorou. Algo está arranhando a porta. Jaber parou por alguns segundos e ficou em silencio, tentando descobrir o que estava lá. Ele sempre foi muito valente, desde a época do colégio, quando sofria bullying por ter a cabeça grande para seu corpo magro. Os colegas que o provocavam, chamando-o de caixa d’água ou Titanic, na maioria das vezes eram chamados para a briga e geralmente perdiam. Seu único medo ultimamente era a possibilidade de perder sua mãe, que ainda estava saudável para uma senhora de oitenta anos.
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